Eu estava ali deitado

Eu estava ali deitado   Luiz Vilela


    eu estava ali deitado olhando através da vidraça as roseiras no jardim fustigadas pelo vento que zunia lá fora e nas venezianas de meu quarto e de repente cessava e tudo ficava tão quieto tão triste e de repente recomeçava e as roseiras frágeis e assustadas irrompiam na vidraça
    eu estava ali o tempo todo olhando   estava em minha cama    com a minha blusa de lã   as mãos enfiadas nos bolsos   os braços colados ao corpo    as pernas juntas  
    estava de sapatos    Mamãe não gostava que eu me deitasse de sapatos   deixe de preguiça menino!   mas dessa vez eu estava deitado de sapatos e ela viu e não disse nada   ela sentou-se na beirada da cama e passou a mão em meu joelho e disse   você não quer mesmo almoçar?
    eu disse que não    não quer comer nada?   eu disse que não   nem uma carninha assada daquelas de que você gosta?    com uma cebolinha de folha lá da horta   um limãozinho   uma pimentinha    ela sorriu e deu uma palmadinha no meu joelho e eu também sorri     mas disse que não    não estava com a menor fome   nem uma coisinha meu filho?  uma coisinha só  eu disse que não    e então ela ficou me olhando e então ela saiu do quarto   eu estava de sapatos e ela não disse nada   ela não diria nada    meus sapatos engraxados bonitos brilhantes  
     ele não que comer nada?  ouvi Papai perguntando e Mamãe decerto só balançou a cabeça porque não a ouvi responder   e agora eles estavam comendo em silêncio   os dois sozinhos lá na mesa em silêncio    o barulho dos garfos   a casa quieta e fria e triste    o vento   zunindo lá fora e nas venezianas de meu quarto
    — você precisa compreender isso Carlos
    — não posso Míriam
    — Não daria certo
— nossos temperamentos não combinam
— não é verdade
— assim será melhor para nós dois
não Míriam   não é verdade Míriam    não é certo Míriam   não pode Míriam   não pode    não pode!   ó meu Deus    não pode
Papai estava parado à porta    pensei que você estivesse dormindo   ele disse    eu sorri    quem vento hem!   ele disse e eu olhei para a vidraça e lá estavam as roseiras frágeis e assustadas fustigadas pelo vento   este mês de junho é terrível ele disse    ele estava parado no meio do quarto    estava de paletó e gravata e pulôver   esfregava as mãos    eu vou lá no Jorge você não quer ir também?  ele perguntou e ficou olhando para mim esperando   não Papai 
dar uma volta   não obrigado   você vai virar sorvete aí dentro ele brincou e eu ri  e ele riu e então ficou sério de novo    esfregava as mãos   fiquei com pena dele    eu sabia que ele queria me dizer alguma coisa   sabia quase o que ele queria me dizer    Mamãe  devia ter dito a ele Artur chame o Carlos para dar uma volta e ele dissera isso   mas agora era diferente    era ele mesmo que queria me dizer alguma coisa e estava atrapalhado   ficava atrapalhado quando queria conversar certas coisas com um filho    e esfregava as mãos   não era por causa do frio   Carlos eu sei o que você está sentindo ele disse    eu sei como é    é muito aborrecido mesmo   mas há coisas piores sabe?
eu olhei para ele e ele então abaixou a cabeça e de novo estava atrapalhado e de novo eu fiquei com pena dele    eu sei que você gostava muito dela  eu sei
eu sei que isso é muito aborrecido mas    ele olhou para mim     não se preocupe Papai eu disse    não precisa se preocupar   não é nada   eu sei mas você não almoçou   eu estava sem fome   pois é    e então nós dois ficamos calados    ele tirou o relógio do bolso olhou as horas   você não quer ir mesmo no Jorge?  ele perguntou e eu disse que não    então ele saiu do quarto    ouvi-o abrindo o portão e depois os passos dele na calçada    o vento zunia lá fora
eu estava olhando para os meus sapatos    ela gostava deles assim engraxados bonitos brilhantes  você é tão cuidadoso Carlos   como gosto de você    você não pode calcular o tanto que eu gosto de você    se acontecesse alguma coisa    se te acontecesse alguma coisa não sei o que eu faria   mas não vai acontecer nada bem vai?    não vai  não pode    se acontecesse alguma coisa acho que eu morreria    eu gosto demais de você     demais    demais   
 fechei os olhos e contei até quinhentos e recordei os nomes de todas as capitais do Brasil e da Europa e recordei os nomes de dezenas de rios e dezenas de montanhas e deitei-me de bruços e deitei-me do lado direito e deitei-me do lado     esquerdo  e deitei-me de bruços outra vez e pus o travesseiro em cima da cabeça e    pus o travesseiro debaixo da cabeça e apertei a cabeça contra a parede e apertei mais ainda a cabeça contra a parede e apertei tanto a cabeça contra a parede que ela doeu e então virei-me de costas outra vez e enfiei as mãos nos bolsos    colei os braços ao corpo    juntei as pernas    abri os olhos
e estava de novo olhando através da vidraça as roseiras frágeis e assustadas fustigadas pelo vento que zunia lá fora e nas venezianas de meu quarto

Para entender o texto
1. O conto que você leu está centrado em uma personagem.
a) Onde ela se encontra?
b) além do espaço ocupado por ela, quais outros espaços são mencionados? O que o leitor sabe sobre eles?
c) Quais são as ações realizadas por essa personagem ao longo da narrativa?
d) Cronologicamente, qual é o tempo aproximado de duração dessas ações?

2. O sentimento predominante no texto é o de tristeza.
a) Qual é o motivo do abatimento de Carlos?
b) Carlos relembra dois momentos distintos que viveu com Míriam. Essas lembranças o ajudam a compreender sua situação atual? Explique sua resposta.

3. Há no texto palavras que contrastam fortemente com a atmosfera triste do conto. Quais são elas?

4. O que essas palavras revelam a respeito da relação de Carlos com seus pais?

5. A escassez de sinais de pontuação e os espaços entre as frases e trechos imediatamente chamam a atenção do leitor.  Em sua opinião, como esses aspectos interferem na construção dos sentidos do texto?

(retirado do livro Para viver juntos de Greta Narchetti e outos)

Comentários

  1. Respostas
    1. Vai depender do seu entendimento. Mas poderíamos dizer que os pensamentos da personagem estão confusos em sua cabeça e uma leitura sem pontuação pode ficar confusa também aproximando os pensamentos à forma de escrita.

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    2. Esses elementos chamam mais atenção do nosso olhar

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  2. Respostas
    1. O final do relacionamento com a namorada.

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    2. 2B. Não, elas apenas justificam seu inconformismo; pois revelam uma contradição. A primeira lembrança mostra uma Míriam decidida e fria, que justifica vagamente a separação. A segunda, provavelmente mais antiga, mostra uma Míriam apaixonada. (Greta Marchetti)

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    3. 2-A)O fim do namora
      2-B)não.isso é só superficial para não se abater muito

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  3. N vcs todos erram,se observarem o menino chega a uma conclusãi nostalgica quando miriam a desperta.então ele lembra de seu passado e faz uma equivalência comparante sobre o que está sendo ocorrido de fato presente.

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